Reflexões


O passado sempre chega ao presente?

O bom artigo de Ana Flavia Pinto e Felipe Freitas sobre Luíza Bairros, divulgado na revista “Afro-Ásia” (nº 52, pp.215-276) traz no final uma preciosa relação de textos da autora divulgados em livros, revistas e jornais.

Há, certamente, mais alguns, dispersos por aí, a que se acrescentarão correspondências de que não se pode ainda avaliar a extensão, e a eventualidade de entrevistas, palestras e depoimentos gravados. Há muito tempo os livros se fazem acompanhar de registros sonoros e, no caso da enunciação vocal de Luíza, é indispensável isso.

Pela influência que Luíza Bairros teve e tem no movimento negro contemporâneo, sua trajetória e testemunho devem inspirar uma variedade de estudos críticos e pesquisas. Ana Flávia Pinto e Felipe Freitas alertam que cobriram apenas parte dessa trajetória nessa primeira contribuição da “Afro-Ásia” e pretendem dar prosseguimento ao trabalho.

Lélia González, de quem editei três artigos (no tablóide “Raça & Classe” , no “Jornal do MNU” e na revista “Humanidades”) ainda não teve a sorte de ter reunidos seus escritos, decorridos tantos anos de sua morte. Tudo virou raridade e as novas gerações a conhecem mais por ouvir dizer, o que é lamentável. Há dezenas de outros personagens, igualmente decisivos para a memória recente de movimento negro, na mesma situação de Lélia.

Já sabemos que será impossível reconstituir a verdade histórica sem o acesso a testemunhos indispensáveis. Não custa lembrar que os programas de história oral surgem em universidades americanas (Columbia, Yale) em 1948 e colhem depoimentos de sobreviventes do holocausto judeu. Ainda há tempo para impedirmos a dissolução do passado recente de esforços e lutas de movimento negro?

Abdias do Nascimento não se cansou de nos mostrar o caminho. Foram coisas preciosas que Abdias nos ensinou. Quando vamos compreender isso, afinal? Abdias se foi, mas deixou tudo arrumado. Tratou com seriedade seus esforços e os de sua geração. Livros, revistas, jornais, panfletos eleitorais, manifestos, discursos parlamentares, testemunhos de aspectos pessoais e biográficos, entrevistas, etc.

Contou com a qualidade de um grupo de assessores negros comprometidos, militantes e intelectuais, e contou (e conta ainda) com a dedicação de Elisa Larkin. Mas nada existiria sem a firmeza de atitude do próprio Abdias, consciente de que seus cuidados na preservação da memória, pessoal e coletiva, eram imprescindíveis e parte essencial de seu legado para as novas gerações. Obrigado, meu velho.

Ocorre-me a pergunta, desculpem-me, pois ela deve ser dirigida aos muitos desavisados entre nós: podemos prescindir do passado? Steve Biko disse, de modo a ser entendido por todos, que um povo sem passado é como um carro sem motor. Então refaço a pergunta que fiz: pretendemos ir a algum lugar? Se é verdade que pretendemos, será preciso ligar o motor.

Em condições políticas “normais”, disse Beatriz Sarlo, o passado sempre chega ao presente. Nossas condições de vida no Brasil não são normais, certo? O Estado, o governo, os meios de comunicação, escolas e partidos, e um número infinito de instituições dedicam-se a apagar ou distorcer os fatos reais e concretos nos quais se envolveu e se envolve a população negra. Tudo bem? Então, compreenda de uma vez por todas que, sem sua ativa participação, o passado não chegará até nós.

Voltemos a Luíza Bairros. Mas quero deixá-la falar. Posso ouvi-la dizendo o fragmento que cito abaixo. Afinal, ela vive através de nós. A minha lembrança é diferente de outras, muitas, e ela revive nesse diálogo que trava com todos nós, seus admiradores.

O texto transcrito a seguir foi retirado de um jornal eventual, editado pelo mandato do então vereador Juca Ferreira, em setembro de 1999 (p. 5), a propósito de relatório da Comissão Especial de Inquérito (CEI), que investigou o racismo no carnaval de Salvador. O relatório foi mutilado por setores governistas e não contou com os votos da oposição.

“A CEI cumpriu um papel importante, mesmo negando a existência do racismo, tão evidente no carnaval e no cotidiano da cidade. O que eu digo parece contraditório? Mas não é. O relatório adulterado, aprovado às escondidas pelos vereadores governistas, demonstra que o movimento negro tem estado com a razão ao apontar o papel das instituições na manutenção do racismo, e a conivência destas com setores empresariais. Para manter o povo negro fora das manifestações que ele próprio (re)criou vale tudo. Brancos travestidos de aliados participam de nossas organizações, dizem professar as religiões negras mas, ao mesmo tempo, conspiram contra nossos interesses, em favor dos senhores da casa grande em que se transformaram os blocos de trio. Negros, numa versão contemporânea dos feitores, negociam a história de seu próprio povo e fingem esquecer a constante discriminação que também sofrem, às vezes calados, às vezes sorridentes, e sempre curvados pelo peso da subserviência. Diante disto, resta ao movimento negro, e aos que a ele se aliam, sem demagogia, ir às ruas para realizar uma grande manifestação contra o racismo e, ao mesmo tempo, denunciar os blocos de trio racistas e seus porta-vozes na Câmara dos Vereadores.” Luiza Bairros. Iyalodê – Centro de Referência da Mulher Negra.

A voz indignada de Luíza Bairros nos alcança, é um apelo visceral que nos impulsiona para o combate. Trata-se de uma reflexão honesta sobre uma realidade dilacerante, que perdura no tempo. Nada que não possa ser apagado? Infelizmente, pode sim. Sem nossos esforços, imensos, gigantescos, essa é uma história que pode não ser contada aos negros amanhã.

Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo



Justiça tem sangue?

Esta semana (13/10) o Ministério da Justiça divulgou uma peça publicitária da Campanha “Brasil: A Imigração está no nosso sangue”. Trata-se da imagem de um belo jovem negro com a seguinte legenda: “Meu avô é angolano meu pai é ganês. Brasil a imigração está no nosso Sangue. Há cinco séculos, imigrantes de todas as partes do mundo ajudam a construir nosso país."

A primeira reação de qualquer um que vê uma pessoa negra se dizendo descendente de africanos na campanha é pensar: o MJ está comparando escravidão à imigração? Que imigração é essa que está no sangue? Estão falando dos estupros de meninas e mulheres negras que está no sangue de seus descendentes?

Então você entra no site da campanha e sim, é isso que está sendo dito: " Desde a chegada dos primeiros portugueses, em 1500, o Brasil tem recebido pessoas de todos os continentes, o que nos torna um dos povos mais plurais do planeta.(...) Muitos brasileiros têm famílias formadas por pessoas que migraram de outro lugar para cá: pai, avó, bisavô, tataravó... Essas pessoas, junto com os povos indígenas que aqui estavam, ajudaram a construir o Brasil."

Se imigração fosse equivalente à escravização; chegada fosse equivalente a assalto; ajuda a trabalho forçado e “junto com os povos indígenas” equivalente a etnocídio, não haveria nenhum problema com a campanha do governo brasileiro.

Mas há tantos erros que fica difícil identificar que o mesmo país que considera racismo hediondo, ignora aspectos retumbantes de sua história ou até mesmo trajetórias de políticas públicas, numa peça publicitária desastrosa.

A premissa da condição de equivalência e igualdade entre os povos que aqui chegaram ou mesmo que aqui estavam na “construção” do país é algo há muito superado na historiografia. Aqui chegaram diversos povos em condições diferentes com consequências ainda não transpostas a pessoas negras e povos indígenas.

A celebração da miscigenação para a população negra é a retificação da violência. O que está no nosso sangue são as consequências de abusos, estupros, coerção e diversas estratégias de um projeto genocida que teve na imigração europeia um de suas principais estratégias de branqueamento.

Desde ontem a campanha tem recebido diversas críticas no facebook do Ministério da Justiça, que tem respondido com o mesmo texto de agradecimento, informando que o foco da campanha é a xenofobia, e que o Ministério assim como o governo é contra o racismo.

Como é se posicionar contra o racimo realizando uma campanha contra a xenofobia com um modelo negro sem mencionar racismo? Como o Brasil vai combater xenofobia sem diálogo com racismo? Imigrantes de diferentes nacionalidades são igualmente discriminados?

Alguns dos principais casos recentes de xenofobia no país não por acaso tem ocorrido com pessoas negras de diversas nacionalidades: haitianas, cubanas, senegalesas. Entre os casos há tentativa de homicídio, xingamentos, perseguição e atiramento de bananas. Ser comparado a um macaco deve ser certamente uma experiência vivida por imigrantes de diversas nacionalidades...

Talvez para o Ministério da Justiça, celebrar a imigração seja combater a xenofobia e estampar uma pessoa negra em suas campanhas seja combater o racismo. Assim como dizer que o “governo é contra o racismo” seja a resposta para perguntas que não querem se calar:

Quantos negros o MJ tem em seus quadros para analisarem essa campanha? Que pluralidade é essa que não oportuniza a escuta? O MJ considerou a experiência das pessoas negras ao elaborar ao aprovar essas peças publicitárias? Essa campanha foi feita em diálogo com áreas que trabalham a questão do racismo no governo federal?

Fato é que, se imigração está no sangue, essa campanha vai permitir que o nosso continue a jorrar sob os olhos da justiça.

Dalila F. Negreiros é militante do Nosso Coletivo Negro, Servidora Pública e Mestre em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Fiocruz.




Search
Categories